Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

setblog

Um blog para comentar atualidade e história.

Um blog para comentar atualidade e história.

setblog

17
Abr18

FIM DO MUNDO 51

Setblog FPJoshué

FIM DO MUNDO 51

 

Os dias de Outubro costumam já ser um pouco frescos e ventosos.

A pequena e secular aldeia alcandorada no cimo de um pequeno planalto, era formada por um misto de casas caiadas e de granito tosco e escuro.

As casas eram unidas, como unidas eram as gentes, dispostas ao longo de uma curta rua de terra batida e uma outra ligeiramente mais longa, e pavimentada a seixos rolados negros e polidos pelo caminhar e pela erosão das águas pluviais, que quando chovia transformavam a rua num afluente da ribeira da aldeia.

Ao início de ambas as ruas o largo de entrada a “areeira” lugar de jogos, encontros e da taberna onde os homens à noite bebiam e conversavam

A meio da rua empedrada, a outra taberna e logo o largo da fonte, rossio da aldeia, ladeado por quatro bancos de alvenaria, ponto de encontro de amores, centro diário de crianças e jovens, lugar de cantares e bailes aos sábados e domingos pela noite dentro.

A meio do largo abria-se uma larga e bela escadaria mista, com degraus em alvenaria e lances empedrados, que descia até ao fontanário da aldeia e servia de escorrega para as mais divertidas e perigosas descidas em tábua com sabão…

Para lá da ribeira, dos milheirais e em todo o redor, as densas florestas de pinheiros bravos, eucaliptos, carrasqueiros e urzes, estendidas num infinito carrossel de pequenas e regulares montanhas, envolviam a pequena e aldeia num maternal, doce e sedutor manto de mil verdes.

Quando não havia novena, os fins de tarde para as mulheres tornavam-se monótonos e até enfadonhos.

Haviam de terminar sempre iguais, elas regressavam dos trabalhos do campo, carregando à cabeça enormes cestos raiados, a transbordar de comida para o gado e hortaliças para o jantar; enfiada no braço curvado, uma artística cesta de vime, expõe com orgulho os mais doces figos serôdios e o rebotalho de saborosos pimentos, tomates e pepinos; sobre o ombro dorido pelo trabalho à picota, carregam as ferramentas com que dia após dia, vão rasgando os solos e as próprias mãos.

Os homens: terminada a jorna ao pôr do sol, ficavam-se pela taberna até ao feche, só depois haviam de regressar a casa que já o jantar estaria pronto e a mulher também.

As crianças brincavam em grupos separados:

As meninas cantavam e dançavam à roda no largo da fonte.

Os rapazes mais velhos, esfalfavam-se a jogar à bola de trapos ou de bexiga de porco, um por outro ensaiava os primeiros golpes de gilete na face, outros dissimulados pela palha amontoada na eira do santo, trocam conversas, experiências e iam iniciando a puberdade.

Os mais pequenos jogam à carica e ao botão, este um jogo muito engraçado:

No chão equilibra-se um tubinho feito de cana, sobre o qual cada jogador sobrepõe um botão, de modo que fiquem todos acomodados e em perfeito equilíbrio.

De um seixo ou de um caco velho, antecipada e meticulosamente, prepara-se um pequeno círculo com quatro ou cinco cm de diâmetro - a ”malha”, esta é arremessada uma só vez por cada jogador, a uma distância de seis passos do tubinho, a que se chama “belho” tendo por objetivo, projetá-lo no chão, procurando colocar a “malha”, a menor distância dos botões, agora estatelados, do que o próprio “belho”, retirando de seguida todos  os botões que ficarem nesta condição. Prosseguindo cada jogador, um após outro, até que todos os botões sejam retirados.

As bulhas não eram raras, todos colocavam um botão e havia uns galifões que retiravam todos de uma só jogada. Se dúvidas havia quanto a medições, lá vinham as meças:

Pegava-se um pauzito do chão que esticava e encolhia conforme o interesse dos medidores.

Habitualmente os juízes eram os tais galifões!

Claro!

Mas, mau! Mau!

Era quando um jogador ficava sem botões.

Não se podia desistir sem custos!

Chegava por vezes á ameaça de irradiação!

Ninguém podia ser irradiado, do jogo mais importante da aldeia…

Lembro-me de um dia o Carramim ter levado uma enorme tareia de cinto, por ter arrancado todos os botões das fronhas do enxoval da irmã - perdeu-os todos para o Gino que tinha olhos e unhas de milhafre.

Não entrava no jogo, qualquer um: - havia uma espécie de quota mínima, os principiantes tinham que demonstrar existência, os grandes botões valiam mais.

Vi uma vez um botão metálico de capote militar ser avaliado em oito pequenos…

Um dia para entrar no jogo o Manuel Techugo tirou dois botões da bata, que valiam três cada, esteve toda a manhã na janela da escola com umas orelhas de burro. Era o castigo máximo dado pela justiça escolar, era pior que trinta reguadas!

O Zé Rosa e o Artur preferiam jogar à carica, por cima do muro da areeira, com cerca de trinta centímetros largura e seis metros de comprimento em arco, que constituía o resguardo do pátio da taberna do Caldeira.

Era um jogo mais calmo e mais nobre: colocada a carica sobre o início do muro, cada jogador alternadamente com um só toque na carica e com um só dedo, procurava chegar á meta. Se um jogador deixava saltar a carica para fora do muro, regressava ao início, quem primeiro transpunha a meta ganhava, festejava a vitoria e nada mais, começava novo jogo. Era assim horas e horas a fio.

Mas já no velho sino, da capela centenária erguida no cimo do outeiro do santo, ecoavam as primeiras badaladas, anunciando o aproximar da hora da novena…

Era preciso ir pôr água no cabelo passar o pente e correr para a reza…

Não eram permitidos atrasos!

Só o Ti Diamantino permanecia agora sentado no muro da areeira; cegara aos vinte anos e apesar de ser completamente autónomo, aguardava sempre por companhia para ir até ao adro.

Toda a gente lhe prestava elevada consideração e estima.

Homem culto, lúcido, conhecedor de todos e dos seus problemas, saudável e muito forte. Grande amigo e sobretudo um bom concelheiro e confidente.

A sua presença era notória desde manhã cedo até altas horas da noite, batendo com o bordão de salgueiro nas pedras da calçada, numa ou outra esquina, ou nos muros velhos de pedras toscas, forradas com musgos secos, que hão-de renascer às primeiras águas.

Não passava pela porta da Ti Clemência sem dar um sinal de si. Encostava o ouvido no postigo da Ti Florinda Lobata, certificando-se de que ainda se ouviam os gemidos, de vinte e cinco anos acamada.

Ia sempre à outra rua certificar-se de que a Mariazita lá estava fazendo tiras de trapos velhos, que haviam de dar lindas cobertas de trapos e a ti Brites, mesmo no pino do verão sempre á lareira a resmungar com o rabino tigrado, disputando os últimos tições...

Mas se em alguma casa não notava o habitual sinal de vida lá ia a correr chamar o Chico Fernandes; sempre bêbedo, mas sempre pronto a acorrer e constatar que tudo estava bem.

Lá prosseguia de novo o Ti Diamantino, até ao muro do Caldeira.

Por vezes aproximava-se dele um jovem em silêncio, procurando testar as suas apregoadas capacidades de reconhecimento por apalpação.

Dizia-se á boca pequena que as moças aproveitavam!

Bom!

O homem era só cego!

Num ápice a noite caiu.

Há muito tempo já passara a Ti Silvina!

Era ela que passava o terço, cuidava da igreja, tinha de tratar do azeite para as lamparinas, passar um pano nos santos, vigiar e tratar dos paramentos para a missa de domingo…

Uma vez inesperadamente apareceu o pároco e teve de esperar que a ti Benvinda fosse a correr engomar as vestes, não podia mais repetir-se essa falta de zelo!

Tinha também de acender as velas nos altares de São Simão, padroeiro da aldeia e de São Lucas, que se dizia ser ele que fazia a azeitona fundir.

A mais difícil era a lamparina suspensa no pórtico da capela-mor.

Era necessário baixar o castiçal folgando a corda, prende-la no cutelo de São Simão, com muita paciência acender e subir de novo a lamparina.

Com o movimento e as correntes de ar apagava-se, certos dias havia de repetir a operação várias vezes.

Uma tarde, após ter conseguido seus intentos á primeira tentativa, abrindo um leve sorriso, com os olhitos pequenos e negros como azevinhos, brilhando mais que as próprias velas naquela penumbra quase sepulcral, onde a sua pequena silhueta de criança mal se conseguia enxergar, virando-se para Nossa Senhora, murmurava:

-Mãe santíssima - faço tudo isto com boa vontade, por vezes com muito sacrifício, tu sabe-lo bem…

Agora transformando o semblante e manifestando alguma tristeza dizia:

-Sabeis bem mãe santíssima - todas as mulheres da minha idade gozam a vida, Foram a bailes, têm filhos, têm homem todos dias e tu bem sabes que algumas até têm mais que um!

- Eu, eu nunca te deixei!

-Com toda a dedicação e devoção estou sempre junto a ti!

-Ó!

-Perdoa-me este desabafo, Mãe Santíssima!

-E ao menos levai-me para o Céu, quando eu for velhinha.

-Levai-me ao menos para o céu…

Já tocavam agora a segunda série de badaladas, pouco depois começava o terço!

Ninguém podia chegar atrasado…

Pelas frestas rasgadas nas grossas paredes de granito e adobe entravam os últimos raios de luz do entardecer pré outonal, que se reflectiam nos ganchos em ouro e prata a prender e adornar os cabelos pretos e molhados das raparigas por debaixo dos véus de seda transparente.

As mulheres mantêm os cabelos e grande parte do rosto cobertos com espessos lenços pretos.

As mais idosas chegam primeiro.

-Venham para dentro!

Reclamava a Ti Silvina, para algumas moças que gostavam de fazer finca-pé no adro, na esperança de ouvir algum galanteio mais ou menos lisonjeiro.

Depois entram os homens.

Os rapazes vão ainda ficando na rua até à última badalada.

Os garotos já foram na frente das mulheres.

-Vai para dentro que já está a tocar a ultima vez!

Era a voz da ti Isaltina sempre a correr sempre atrasada e surda que nem uma galga de lagar!

Já a ceia ficara a ferver encima da trempe!

É preciso fazer tudo.

Quando a novena terminar têm de ter a comida pronta e pô-la na mesa.

O Caldeira vai já fechar e os homens chegam para comer.

-Venham para dentro, o terço já começou, reclamava a rosa.

Três badaladas.

-Em nome do pai do filho e do…

-Silêncio!

-Vamos rezar o terço em honra de nossa senhora...

Um estranho sussurrar crescia na ala dos homens, ao fuda da capela…

Alguns já se deslocavam para debaixo do alpendre.

-Façam pouco barulho!

-Vamos rezar o terço em…

O burburinho estendia-se agora pelas filas ao centro da capela…

-Assim não é possível!

-Ai valha-me Deus!...

-Em nome do pai do filho e do espí…

A Etelvinita com toda a sua ingenuidade e singeleza olhou para traz e num tom aflitivo gritou:

-Um incêndio, ti Silvina!

-Grande incêndio!

Fez-se um instante de silêncio e todos olharam para trás.

-Grande fogo!

Era a voz autoritária da dona Aurora, fora regente de ensino, gozava de uma pensão do estado e como tal, de invulgar e respeitável credibilidade.

A ti Silvina apertando o crucifixo com mais força, entre as pequenas e alvas mãozitas, sobre abrindo os negros olhos, com o rosto agora transformado numa irreconhecível expressão de temor, soltou um prolongado gemido, voltando-se para nossa senhora gritou:

-Ai Mãe Santíssima!

-Onde é o fogo?

- Onde é, o fogo?

Em uníssono, respondia a assembleia:

-Ali por cima do vale dos beirins!

-Está tudo a arder!

-Credo! santo nome de Jesus!

-Pai - nosso que estais nos céus...

-Vão buscar baldes!

Gritava o Ti João Léguas, era tão medricas, que enquanto gritava, corria no sentido contrário lá para as bandas da ribeira.

O açude dos Catrões, apesar da prolongada seca, ainda tinha muita água e seria por certo um lugar bem mais seguro.

Era uma muralha artificial imponente e vertiginosa e a maior e mais bela queda de água sobre o maior pego de toda a ribeira, esta que sob as mais belas e frondosas margens de salgueiros, amieiros, ulmeiros, choupos e silvados, serpenteava entre batatais e milheirais, que davam sustento, cor e felicidade a toda a aldeia, que de mais nada dispunha, a não ser da sua capelinha.

A minha avó sempre muito atenta, costumava dizer-me:

-Não vás nadar para o açude, olha que tem lá cobras de água!

Mas aquele lugar era ímpar e irresistível.

Mergulhávamos bem do alto das enormes pedras ali estrategicamente colocadas por dezenas de homens e que constituem barragem de águas cristalinas, as quais se lançam abruptamente em catarata longa, espessa e branca, formando um véu de noiva que se completa com o frondoso e não menos alvo sabugueiro bem abraçado ao

cume da muralha, onde os moços se ocultavam das mulheres que vinham lavar as roupas, mostrando uns aos outros os corpos ainda nus e a escorrer, antes de voltarem a vestir as roupas.

Surgindo de novo com uma pequena cana, um fio e um anzol, disfarçando com uma muito provável pescaria de uma ou outra enguia, um bordalito uma espécie de peixe muito pequeno da família do ruivaco, à beira da extinção naquelas ribeiras, ou até capturando um cágado, brincando com ele nas margens transparentes do pego.

A ti Silvina fazia a terceira tentativa de passar o terço…

-Ai nossa senhora nos acuda! É um vulcão!

Gritava o João Neto:

Trabalhava em Lisboa, saberia muito bem como é um vulcão!

Todos correram para junto dele debaixo do alpendre, já ninguém ficara dentro da capela…

Alguém gritava:

-E chega aqui?

-Não! Não é um vulcão!

Era a primeira vez que se ouvia a voz do Caldeira junto da igreja, nunca deixara a taberna, agora assustado mas simulando coragem questionava:

-Calma!

-Ó Corda foste tropa nos Açores, não há lá muitos vulcões?

-Os vulcões são assim?

O Corda homem lúcido sereno, com muitas horas de navegação, muita geografia percorrida e muita experiência de situações medonhas respondeu.

-Os vulcões dos Açores estão mortos!

-Nunca vi um vulcão, mas isto não é um vulcão.

-Não!... Não pode ser um vulcão!

-Isto é muito mais que um vulcão!

De novo alguém gritava:

-Ai Credo em Cruz!

-Nossa senhora nos acuda! Santo nome de Deus!

O Corda continuava na sua tentativa pouco convicta de tentar serenar o ambiente e dizia:

-Rezai todos o terço, eu vou ao Sardoal perguntar à Guarda, eles saberão com certeza.

-Eu vou contigo Corda.

-Não, eu vou de bicicleta!

-Ai Jesus!

-Vai depressa Manel!

-Agora vamos todos rezar o terço…

Já ninguém ia para dentro da capelinha, já se ouviam alguns soluços e a ti Mariana corria pela rua abaixo com a neta ao colo, gritando:

-Acudam! Acudam!

Outros mais corajosos subiam ao alto do serro, tentando ver melhor e já se ouviam no cimo do monte os gritos de aflição:

-Acudam!

-Isto vem do céu!

Ouvia-se outro grito:

-É a profecia!

Começam abraços, choros, suspiros, as crianças gritam e correm para o colo dos pais.

Debaixo do alpendre forma-se um cacho humano de corpos abraçados, olhos rasos de lágrimas e bocas que já não articulam palavras, apenas e só gemidos e gritos.

Apenas o ti Acácio - figura acolita da igreja, que além de ser pai de um seminarista, sacristão, cabo chefe e regedor, era também o moleiro da aldeia e sobre tudo endireitava a espinhela e benzia do mau olhado - uma palavra sua, era como uma lei divina e agora suplicava:

-Silêncio!

-Rezamos o terço!

-Pai nosso que estais nos céus...

Ele próprio trémulo, voz rouca submissa e temerosa, exclamou:

-Queridos irmãos! Dizem as escrituras que desta vez o mundo acaba com fogo!

Gritos de todas as bocas, desmaios, rostos horrorizados colam-se de boca e olhos cerrados, amontoam-se os corpos, como que todos queiram ir abraçados para o céu.

As línguas de fogo longas, cruzadas e sobrepostas em camadas e tons nas cores mais tenebrosas e avassaladoras como as descrições dos infernos, estavam agora já sobre as cabeças.

Havia já gente que gritava sentindo o calor do fogo nas próprias faces.

Crescia o abraço coletivo de corpos horrorizados.

Era mesmo o fim do mundo!

-Salvemos as nossas almas!

-Purifiquemos os nossos corações e peçamos perdão…

-Perdoamos uns aos outros!

-Todos os que perdoarem serão perdoados.

-Não há sacerdote, mas podemos confessar-nos a Deus!

O primeiro foi o Jerónimo:

-Perdoa-me João fui eu que te denunciei…

Coitado do João Palheto tivera seis anos preso em Peniche, sem saber porquê, onde lhe arrancaram as unhas da mão direita, ficando aleijado para sempre, - dizia-se à boca pequena que pregara um papel no freixo do adro a pedir água para a aldeia.

Outro grito, entre tantos que se confundiam:

-Perdoa-me Zé Pedro, fui eu que deitei fogo a tua cevada!

Mais outro:

-A ti Ventura, que estais nos céus, perdoa-me, roubei-te os cortiços no monte de Além.

Os gritos e os pedidos de perdão sucediam-se e sobre punham-se em pânico…

-Nossa Senhora de Fátima!

-Levai-me para o Céu que eu dou-te tudo o que tenho!

A ti Adelina mulher de muito respeito e estima, já muito velhinha, desfeita em lágrimas, soluçando e escondendo o rosto, murmurava com voz trémula, pedindo desculpa ao seu falecido:

-Peço-te perdão Calisto, tanto que tu trabalhavas tão longe, de nada sabias e eu enganava-te com o pastor de Bioucas.

Todos fechavam os olhos, ninguém queria presenciar o tenebroso holocausto final!

As aterradoras línguas de fogo já envolviam as árvores e as montanhas, o próprio freche do adro já ardia lá no alto, o escarlate reflectido nos rostos mostrava o fim.

Homens mulheres e crianças na aldeia eram ao todo 193 pessoas, 191 criaturas de Deus estariam naquele cacho humano donde já mal saíam alguns gemidos e poucos ais.

A agonia era total…

Até o ti Luís veio juntar-se ao horror do juízo final!

Nunca antes se vira na aldeia!

Só os mais velhos o conheciam!

Vivia há trinta e tal anos no serro, entre estevas e carrasqueiros, num velho palheiro sem porta nem janela, envolto em silvas e uma ameixeira pardinha, de onde só saía de noite para pregar!

Uma familiar afastada, ia uma vez por semana deixar-lhe comida, que entornava num tarro de cortiça junto da ameixeira, sem que alguma vez se encontrassem.

Muitos por desdém chamavam-lhe o poeta!

Era frequente fazer as suas pregações em verso!

Por vezes iam os jovens à noite com o ti Diamantino para à tapada, ouvir os seus sermões.

Ao domingo à noite enquanto as raparigas cantavam e dançavam no largo da fonte, costumava declamar esta espécie de lengalenga:

 

-Os meus versos não são meus,

-Nem é minha a sua razão.

-Os versos são de quem os canta,

-Sentindo-os no coração!

 

Dizia-se que ficava a chorar, horas e horas seguidas.

Depois voltava com nova lengalenga!

 

-Agora que tendes presteza,

-Gozai bem o presente.

-É que um futuro de tristeza,

-Espera por toda a gente!

 

- Agora que tendes presteza

Cantai, gozai o presente

É que no futuro a Incerteza  

A crueldade e a tristeza

Espera por toda a gente!

 

 

Porque houvera de ter nascido

Se não cheguei a viver

Se ao menos tivesse morrido

Quando meu corpo ferido

Também a vós fez sofrer.

 

 

Neste sofrimento horrendo

Que é dos dias que não vivi!

Aqueles que vós estais vivendo,

São os mesmos que estou sofrendo,

Não foi por certo eu que os perdi!

 

 

Quando minhas chagas abri,

Tornei-me pessoa medonha.

Mas há muitos que eu já vi

Condenando meu estar aqui

E detendo pior peçonha!

 

 

Guardai o pano rasgado

Cuidado não fiqueis nu.

Se hoje eu vivo tão isolado

Com o coração gelado,

Amanhã podeis gelar tu.

 

 

Se o destino me marcou,

No ventre de minha mãe.

Fez de mim este que eu sou,

Que até o tempo desprezou

O que fará de vós também?

 

Jamais vos abandonei,

Meu coração vive a sangrar.

Por amor eu vos deixei,

Ninguém sabe o que eu passei

Para o mal vos não pegar!

 

Cada dia a dor aumenta

Há de um dia terminar

E esta peste tão violenta

Deixará de ser tormenta

Porque a cura há de chegar.

 

Vivo sem ter amor

Vivo sem roupa nem pão

A ninguém guardo rancor

A vós e a nosso senhor

A todos o meu perdão.

Nos dias que recebia comida, vinha à noite como que agradecer e pregava:

 

-Se o destino me marcou,

-no ventre de minha mãe.

-Fez de mim aquilo que eu sou,

-o que fará de voz também?

 

-Jamais vos abandonei,

-meu coração vive a sangrar.

-Por amor eu vos deixei,

-para o mal vos não pegar!

 

O sua presença assustava tanto, quanto as devoradoras chamas do extermínio.

Assustava, não pelo horror da sua imagem - quase sem nariz, sem lábios, sem dentes, o cabelo e barba cobriam-lhe todo o tronco, a roupa talvez retirada de um espantalho, coberta de barro negro, agora reflectia tons marrom e amarelados das labaredas de fogo, um barrete negro e espesso como o barro ressequido, escondia-lhe a testa e as orelhas, deixando a descoberto dois pequenos olhos sem cor nem brilho.

Assustava sim!

Não a imagem deprimente e horrorosa do ti Luís, mas a repulsa de todos os presentes que apesar de condenados, ainda gritavam:

-Vem aí o leproso não o deixem aproximar!...

Agora tornaram-se compreensíveis os seus sermões e aquela estranha lengalenga que lhe costumávamos ouvir à noite.

Todos quando o ouviam faziam chacota:

-Olha lá esta o poeta a pregar!

-Amanhã vai chover!

Só as crianças e o ti Diamantino escutavam e queriam entender o que ele dizia:

-Cai a moça, porque é bela!

-Cai o pescador ao mar,

-Cai o homem encima dela!

-Cai o véu com acaba de casar!

-Cai um pássaro do ninho,

-Cai a beira do beiral!

-Cai do berço o menino,

-Cai-lhe o cordão umbilical!

-Cai que nem peixe em anzol,

-Cai a noite pela janela,

-Cai em mel a sopa mol!

-Cai o pau nas costas dela

-Cai cansada no colchão!

-Cai no sono e ouve chorar,

-Cai num sonho de ilusão,

-Cai em si e dá-lhe de mamar!

-Cai no sono exausta e nua!

-Cai de tanto trabalhar,

-Cai de novo e vai para a rua,

-Cai o dia e volta a lutar

-Cai na soleira cansada!

-Cai de joelhos para santa!

-Cai e enferma deitada!

-Cai mil vezes se levanta!

-Cai cansada de cair!

-Cai-lhe o próprio coração!

-Cai, vai, vem, e torna a ir!

-Cai finalmente no chão!

 

Junto da capelinha, só o Zé Emídio, “O Louco”, permanecia sentado no mesmo poial de sempre!

-Anda para aqui Zé Emídio!

-Que Deus lhe dê perdão!

-Não sabe o que faz!

-Coitadinho!

Quase ninguém lhe ouvia a fala, passava as madrugadas a armar aos pássaros e aos láparos, as tardes eram dormidas debaixo da frondosa amoreira da ti Brites. Ao fim da tarde, depois de assistir ao terço, sentado da parte de fora da capela, recolhia ao palheiro do “tio Esteves” onde vivia com um enorme gato cizento, um molhe de ratoeiras e um saco.

De novo alguém gritava em aflição!

-Vem para junto de nós Zé Emídio!

-Vamos todos morrer!

-Deus também te perdoa e também te levará para o Céu!

Com voz sumida a frouxa, O homem responde

-Tenho vergonha…

-Não tenhas receio, confessa tudo!

-Não é isso!

-Eu só queria pedir uma coisa ao ti Manel Silva!

-Pede filho!

-Pede!

-Pede tudo!

Era este o homem mais rico da aldeia dono da maior quinta onde abundavam os mais variados e melhores frutos, legumes e animais, onde ninguém ousava cruzar uma vereda ou contemplar um qualquer fruto.

Um dia deu uma tareia com um pau de marmeleiro no Zé Biscas porque este se atrevera a ir beber água na bica do tanque.

A fama da sua adega e carnes curadas era pregoada por toda a região e não era raro, patrulhas da Guarda Republicana da vila e de outros concelhos, passarem a caminho da quinta e todos sabiam que não era para vigilância.

-Sei que vamos todos morrer!

Balbuciava o ti Zé Emídio e com timidez continuava:

-Se o ti Manel Silva…

-Altaneiro e arrogante pretendendo fazer algum bem antes de prestar contas a Deus, grita o ti Manuel Silva:

-Diz rapaz

-Estou com vergonha!

-Diz!

-Diz tudo, que eu perdoo-te tudo.

-Eu só queria pedir-lhe uma coisa…

-Pede tudo, que seja pelos nossos pecados!

Zé Emídio hesitando, com a voz embargada e triste, diz para o avarento:

-Se o ti Manel Silva…

-Eu nunca provei do seu presunto, nunca bebi do seu vinho nunca soube o que eram esses sabores…

-Ah! Se me emprestar as chaves da sua adega!

-Irá direitinho para o Céu, Deus recebê-lo-á com amor e gratidão e eu amanhã devolver-lhe-ei as chaves…

-Toma, pobre criatur…

-Que seja pelas suas intenções

-Toma!

-Vai, come e bebe tudo o que tiveres na vontade.

-Coitadinho, Deus lhe dê perdão, não sabe o que faz!

-Que ao menos morra em paz!

Era mesmo o fim do mundo!

O dia seguinte nasceu radioso, toda a gente seguia cabisbaixa para os campos.

O ti Zé Emídio, “O Louco”, lá foi cumprir a promessa, entregando as chaves ao ti Manel Silva.

E certamente ansiando outra Aurora Boreal

Joshué

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2020
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2019
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2018
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2017
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub